terça-feira, 15 de maio de 2012

amor / apego - diálogo entre o rei Pasenadi e o Buda



-Mestre Gautama, algumas pessoas dizem que vós teríeis declarado que não se deveria amar e que quanto mais alguém ama, mais sofre. Admito que há alguma verdade nessa afirmação, mas no entanto não estou satisfeito. Sem amor, a existência seria desprovida de sentido. Peço-vos, ajudai-me a resolver este dilema.

O Buda fitou o rei com benevolência:
- Majestade, a vossa pergunta é extremamente judiciosa e muitas pessoas podem tirar proveito da sua resposta.Existem vários tipos de amor. Devemos examinar atentamente a natureza de cada um deles. A vida tem uma necessidade imperiosa de amor, mas não daquele que é baseado na luxúria (desejo), na paixão, no apego, na discriminação, ou no preconceito. Majestade, é uma outra espécie de amor que é indispensável, o amor que se baseia na bondade e na compaixão, ou maitri e karuna.
Quando as pessoas falam de amor, referem-se habitualmente ao que existe entre pais e filhos, marido e mulher, membros de uma mesma família, casta ou país. Como a natureza de um tal amor depende das noções de “eu” e de “meu”, esse sentimento permanece ao nível do apego e da discriminação. As pessoas querem amar apenas os seus pais, o seu esposo, os seus filhos, os seus netos, os seus avós, os membros da sua família ou os seus compatriotas. Mantendo-se prisioneiros do seu apego, preocupam-se com os acidentes que podem atingir os seus entes queridos, antes ainda de eles se produzirem. Quando tais catástrofes se produzem, sofrem terrivelmente.
O amor baseado na discriminação gera preconceitos. As pessoas tornam-se então indiferentes, ou mesmo hostis, aos que ficam de fora do seu próprio círculo amoroso. O apego e a discriminação são causadores de sofrimento para nós próprios e para os outros. Majestade, o amor a que todos os seres aspiram sinceramente é feito de bondade e de compaixão. Maitri é o amor que pode trazer felicidade aos outros. Karuna é o que faz desaparecer o sofrimento dos outros. Maitri e Karuna não pedem nada em troca. O campo de acção da bondade e da compaixão não se limita aos pais, à esposa, aos filhos, aos membros da família, ou da mesma casta ou aos compatriotas. Estende-se a todas as pessoas e a todos os seres. Em Maitri e Karuna, não há discriminação, nem “eu” e “não-eu”. E sem discriminação não há apego. Maitri e Karuna dão felicidade, aliviam o sofrimento e não causam infelicidade nem desespero. Sem eles, a vida seria desprovida de sentido, como haveis dito. Graças à bondade e à compaixão, a existência impregna-se de paz, de alegria e de contentamento. Majestade, sois soberano de um grande país. Todo o vosso povo beneficiará da vossa prática da bondade e da compaixão.

O rei pensativo baixou a cabeça e depois voltou a elevar os olhos para o Buda:
- Sou responsável pela minha família e pelo meu reino, se não amar a minha própria família e o meu próprio povo, como poderei velar pelo seu bem estar?

O Buda responde:
- É claro que deveis amar a vossa própria família e o vosso povo, mas o vosso amor deve estender-se para além desses limites. Amais e cuidais do príncipe e da princesa mas isso não deve impedir vos de agir da mesma forma em relação a todos os outros jovens do reino. Se conseguires ama-los a todos, o vosso amor atual limitado transformar-se-á num amor infinito que engloba tudo, e todos os vossos jovens súbditos serão como vossos filhos. Eis o que significa o termo coração compassivo, não se trata de um simples ideal, uma pessoa como vós pode atingi-lo.

O rei diz:
- E quanto às crianças dos outros reinos?


O Buda responde:
- Nada vos impede de os amar como vossos próprios filhos mesmo que não estejam sobre a vossa proteção. Amar o seu próprio povo, não é razão para pôr de parte a população dos outros países.

O rei diz:
- Mas como posso manifestar-lhes o meu amor se eles não estão sob a minha responsabilidade?


O Buda responde:
- A prosperidade e a segurança de uma nação, não deve depender da pobreza ou da insegurança das outras. Majestade, uma paz e uma prosperidade duradouras, assentam numa união das nações, num compromisso comum em busca do bem estar de todos. Se desejais sinceramente que o seu país (Kosala ) tenha paz e que os vossos jovens não tombem nos campos de batalha, deveis ajudar os outros reinos a encontrar a paz. As politicas econômicas e de negócios estrangeiros, devem seguir o caminho da compaixão para que uma paz verdadeira seja instaurada, juntamente com o vosso amor e a vossa atenção para com a vossa própria nação, deveis amar e dar assistência aos outros países. Majestade o ano passado visitei a minha família no reino Sakia, fiquei vários dias junto aos himalaias onde refleti sobre uma politica baseada na não violência. Compreendi que as nações podiam podiam conhecer a paz e a segurança sem recorrer a medidas extremas como a prisão ou as execuções. Conversei a esse respeito com o meu pai, o rei Sudoana. Aproveito a oportunidade que me é dada hoje, para me abrir convosco. Um governo que alimente a sua compaixão não tem qualquer necessidade de utilizar métodos violentos.

O rei exclamou:
- Maravilhoso! Verdadeiramente maravilhoso! As vossas palavras são de ouro! Vós sois um ser iluminado! Prometo reflectir sobre o que dizeis. Por ora, no entanto, permiti que vos faça uma última pergunta. O amor é composto por elementos de discriminação, de desejo e de apego. Segundo dizeis, esse tipo de amor gera preocupações, sofrimento e desespero. Como poderá o amor ser isento de desejo e de apego? Como poderei evitar macular com preocupações e sofrimento o amor que nutro pelos meus filhos?

O Buda respondeu:
- Devemos examinar profundamente a natureza do nosso amor, que deve trazer felicidade e paz àqueles que amamos. Se ele for baseado no apego apaixonado e no desejo egoísta de possuir os outros, seremos incapazes de lhes trazer a paz e a felicidade. Esse sentimento falseado prejudicá-los-á. Um tal amor não é mais do que uma prisão. Se as pessoas amadas não conseguirem ser felizes por causa do nosso amor, procurarão libertar-se dele. Não aceitarão essa gaiola dourada. Esse sentimento que existe entre nós e eles transformar-se-á progressivamente em ódio e cólera.
Majestade, segundo a Via da Iluminação, o amor não pode existir sem compreensão. O amor é compreensão. Se vós não compreendeis, não podeis amar. Os maridos e as mulheres que não se compreendem não podem amar-se. O mesmo acontece entre irmãos e irmãs, pais e filhos. Se desejais que os seres a quem quereis sejam felizes, deveis aprender a entender os seus sofrimentos e as suas aspirações. Só então sabereis como aliviar os seus sofrimentos e ajudá-los a realizar as suas aspirações. Este é o verdadeiro amor. Se quereis que os vossos entes queridos se submetam às vossas ideias, permanecendo vós hermético aos seus desejos, isso não é amor, mas a manifestação do vosso desejo de possuir o outro e de satisfazer apenas as vossas necessidades, as quais jamais serão saciadas dessa forma.
Majestade, o povo do Kosala tem os seus próprios sofrimentos e aspirações. Se conseguirdes compreendê-las, sereis capaz de o ajudar. Ficai à escuta dos sofrimentos e aspirações dos dignitários da vossa corte e sabereis dar-lhes felicidade. Quando todos conhecerem a felicidade, a paz e a alegria, vós também as conhecereis por vosso turno. Eis o que significa a palavra amor segundo a Via do Despertar.
O rei Pasenadi ficou muito comovido. Nenhum mestre espiritual ou sacerdote brâmane tinha jamais aberto a porta do seu coração, nem lhe permitira compreender tantas coisas tão profundamente. “A presença deste mestre tem uma grande importância para o meu país”, pensou ele. Após um longo silêncio, olhou para o Desperto.

- Agradeço-vos por me terdes esclarecido sobre este assunto. Há ainda um pormenor que me inquieta. Declarastes que o amor baseado no desejo e no apego gera sofrimento e desespero ao passo que o amor nascido da compaixão traz paz e felicidade. Mas este último tipo de amor ainda pode ser causa de dor e sofrimento. Por exemplo, amo o meu povo. Quando ele é atingido por um desastre natural, como um tufão ou uma cheia, também sofro. Estou certo que o mesmo se passa convosco. Deveis sofrer quando vedes uma pessoa doente ou moribunda.

- A vossa pergunta é, uma vez mais, pertinente. A minha resposta fará com que entendais mais profundamente a natureza da compaixão. Deveis saber que um sofrimento causado por um amor baseado no desejo e no apego é mil vezes mais doloroso do que uma dor resultante da compaixão. É conveniente distinguir entre os dois tipos de sofrimento – o primeiro é inútil e apenas serve para perturbar os nossos espíritos e os nossos corpos, ao passo que o segundo desenvolve a atenção ao outro e o sentido da responsabilidade. O amor compassivo permite fornecer a energia necessária para fazer face ao sofrimento de outrem. O amor baseado no apego e no desejo apenas gera mais angústia e sofrimento. A compaixão fornece o combustível para as acções sociais. Grande Rei, a compaixão é mais do que necessária e a dor que dela resulta pode revelar-se útil. Se não conseguirdes sentir o sofrimento dos outros, não sois verdadeiramente humano.
A compaixão é o fruto da compreensão. Praticar a Via do Despertar leva-nos a ver o verdadeiro rosto da realidade, que é impermanente. Cada coisa, sendo impermanente, não possui um eu separado. Tudo está condenado a desaparecer. Um dia, o vosso próprio corpo não existirá. Quando uma pessoa vê a natureza impermanente de todas as coisas, a sua concepção da vida torna-se calma e serena. A realidade da impermanência não perturba nem o seu corpo nem o seu espírito. Em consequência, os sentimentos dolorosos originados pela compaixão não estão impregnados da natureza amarga e grosseira que caracteriza os outros tipos de sofrimento. Pelo contrário, a compaixão dá mais força a qualquer pessoa. Grande Rei, hoje, aprendestes alguns dos princípios fundamentais da Via da Libertação. Num próximo dia, terei muito gosto em partilhar outros ensinamentos convosco.


Este texto é um excerto de um diálogo entre o rei Pasenadi e o Buda. Transcrito por Tich Nhat Hanh no seu livro "Sur les traces de Siddharta".

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